quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O que se treina?

 

(Kobudô em caracteres japoneses)


Nem sempre um praticante de arte marcial tem o interesse em saber mais a fundo sobre a história da arte ou estilo que pratica e quando tem, nem sempre se depara com informações corretas a respeito. Por isso, tentaremos trazer algumas reflexões sobre o assunto, a fim de aclarar para os que buscam maior entendimento, em especial sobre as artes samurais.

Budô (), termo em japonês para artes marciais, que significa “caminho marcial”, é dividido historicamente entre Kobudô e Gendai budô, sendo o marco de separação o início da Era Meiji, em 1868, quando ocorre a extinção da classe samurai. Desta forma, convenciona-se a denominação de Kobudô para as escolas que foram criadas antes desta data, onde Ko () significa “antigo”. E Gendai Budô para as escolas criadas após essa data, significando Gendai (現代) “era moderna”.

As escolas de Kobudô, denominadas também Koryu (古流), são escolas que foram fundadas por samurais após muitos combates e estudos, arriscando suas vidas no processo e que de forma empírica buscaram o aprimoramento técnico e espiritual para a criação de suas escolas. Onde também se constata em muitas delas a iluminação e uma pitada de inspiração divina para tal.

No entanto, vê-se facilmente o uso genérico de termos, que são para denominar escolas de Koryu, como kenjutsu (剣術) e iaijutsu (居合術) – “arte da espada” e "arte de desembainhar a espada”, respectivamente - para definir algo “criado” em dias atuais, ou ainda pior, visivelmente cópia parcial, ou até integral de escolas antigas tradicionais, com pequenas alterações ou misturadas entre si. Enquanto que ao nos deparamos com um estilo clássico autêntico, veremos o uso destes termos juntamente com o nome do estilo, como por exemplo: Bokuden Ryu Kenjutsu ou Shinkage Ryu Iaijutsu, e sendo suas origens e história documentadas.

 É importante então ressaltar que, em se tratando de artes que se utilizam de armas mais especificamente, não faz nenhum sentido em tempos atuais, alguém se dizer criador de um estilo de arte de espada. Isso é algo equivocado, simplesmente pelo fato de que o combate real com espadas não é algo presente em nossos dias e o processo empírico não é possível.

 É fato que a espada japonesa é algo que fascina e atrai muitos que admiram a cultura e história japonesas, em especial a figura do guerreiro samurai e as diversas artes combativas que o rodeiam. Sendo assim, temos alguns desses entusiastas que acabam embarcando nessa ideia de criar suas próprias “técnicas” de espada, e aí temos diversos perfis diferentes.


(imagem: Tamar Martinez)


Há quem simplesmente “brinque” com espadas, leigos que compram espadas e copiam coisas que veem na internet, filmes, animes, etc. O que é muito perigoso e não recomendado, pois ao não se ter conhecimento técnico sobre espadas e seu manuseio, há sérios riscos para essa pessoa e os seus. Há vários tipos de espadas diferentes para usos diferentes, então, é muito arriscado uma espada de enfeite, uma afiada, ou até mesmo uma própria para treino, nas mãos de alguém sem o devido conhecimento.

Existe também em alguns países uma prática performática, com armas tradicionais japonesas (ou inspiradas nelas), se tratando de uma apresentação solo com bastante habilidade acrobática por parte dos participantes, com piruetas e até arremessos das armas das formas mais criativas, mas que nada tem a ver com artes tradicionais. Enfim, uma prática que talvez se assemelhe ao citado anteriormente.

Vemos ainda práticas que se utilizam de indumentárias de proteção e espadas não metálicas, visando o combate livre, com golpes atingindo as áreas protegidas. Muitas vezes usando equipamentos oriundos de artes marciais tradicionais, ou adaptadas das mais diversas formas. Também, sem que haja efetivamente uma conexão com escolas tradicionais.

E temos uma boa parcela de pessoas que se aventuram na “invenção” de sua própria “arte de espada”, sendo possuidor de certo conhecimento em alguma arte marcial, seja ela com prática de espada, ou não. E isso de certa forma é visto por muitos como uma coisa normal e válida, quando na verdade não deveria ser. Criar algo novo, continua sendo equivocado mesmo nesse cenário.


(imagem: kenshi247.net - Escola Suiô Ryu Iai Kenpo, Japão)


E esse último é o caso que mais confunde as pessoas, no sentido de passar a impressão de ser algo clássico, tradicional, quando na verdade se trata de algo oposto, sem compromisso com estilos antigos. Uma arte de espada, como a que estamos nos referindo, tem uma trajetória de transmissão que visa preservar o estilo, suas técnicas e filosofia, mantendo assim geração após geração os ensinamentos originais do criador. São ambientes muito distintos. Ao se treinar algo que possui uma raiz histórica, se fica imbuído de pensamento de conservação, de manutenção e transmissão desse estilo e não de inovação, criação ou mutação.

 Além disso, para se compreender por completo um estilo tradicional que se elege para praticar, é preciso uma vida dedicada a isso, estudo aprofundado que só é possível com muito afinco e compromisso, por isso é fundamental que haja essa visão por parte do praticante. Querer estudar apenas fragmentos de uma escola, ou de várias escolas, não irá levar ao conhecimento pleno de nenhuma delas e sim apenas a algo superficial, que com o passar dos anos se revelará uma ilusão e perda de tempo.


(imagem: youtube / 守口杖道教室 - Seitei Jodo, ZNKR, Japão)

Vale mencionar as artes ligadas à Zen Nihon Kendo Renmei (ZNKR), também conhecida como All Japan Kendo Federation (AJKF), que é a federação japonesa responsável pelas artes do Kendô, Iaidô e Jodô, que em artigo próximo detalharemos sua origem e importância para o Budô japonês. Atualmente, são artes praticadas em escala global, unindo budokas do mundo todo, que muitas vezes treinam de forma exclusiva estas artes, ou de maneira conjunta com estilos tradicionais de Kenjutsu, Iaijutsu e Jojutsu.

Esperamos que este breve texto tenha servido para trazer luz a alguns aspectos relacionados às artes marciais tradicionais. E que assim, por mais mal-intencionado e astuto que alguém possa ser, não consiga ludibriar pessoas que buscam treinar algo autêntico.

 

Dja mata ne!

 

segunda-feira, 22 de março de 2021

O que é Kata?

(imagem: domínio público)


Kata (形) significa “forma” em japonês e está presente em praticamente todas artes marciais japonesas e também em artes como a cerimônia do chá e teatro Nô. Por meio do kata é possível a conservação e transmissão do conhecimento de determinada arte ou estilo.


Para um praticante de iaido/koryu, o kata é a base do seu treinamento, nele está presente a essência do estilo que se pratica, aquilo que o criador do estilo idealizou para sua escola. Estudar as técnicas contidas nos katas é revisitar o passado e as suas nuances no que diz respeito ao uso real da espada samurai em tempos antigos.



(Aoki Hidekiyo, Suio Ryu Iai Kenpo, Japão)


O kata é um duelo "congelado", como gosto de pensar, é um modelo de uma luta, que contém movimentos pré-estabelecidos, que devem ser repetidos e estudados até a sua compreensão e principalmente até a sua absorção, até ser incorporada pelo praticante.


Vi um sensei de karatedo uma vez exemplificar o kata com uma comparação, que achei interessante, o kata seria como andar de skate em um half-pipe, você vai se deslocar em um ambiente fixo conhecido, enquanto lutar seria como surfar, onde é preciso se adaptar às situações diferentes das ondas.


Nesse sentido, aprender o kata seria ter o conhecimento para se usar num confronto, onde as técnicas apreendidas seriam utilizadas no momento adequado diante às diversas situações. O Kata é a forma do estilo, que era usada em combates.



(Suio Ryu Iai Kenpo: Katsuse Mitsuyasu Kagemasa, 14o. Soke / Katsuse Yoshimitsu Kagehiro, 15o. Soke (atual) / Katsuse Fumitaka)


É normal haver uma maneira correta de se executar uma determinada técnica dentro de uma escola, é a forma desta escola, a maneira preservada ao longo dos anos, passada geração à geração e busca-se alcançar essa forma. Os olhos dos senseis facilmente identificam uma execução correta ou errada e é através desse olhar que é possível evoluir, lapidando dia a dia sua técnica e aprendendo todos os conceitos existentes nos katas.


Os katas remetem a diferentes situações e requerem do praticante resposta condizente ao que está acontecendo no duelo daquele kata. Um, dois, três, quatro oponentes? Ataque pela frente, lateral, costas? Esquivar, defender, acertar primeiro, contra-atacar? Cada cenário possibilita explorar e desenvolver as técnicas e habilidades necessárias para uma atuação no tempo e forma adequados.



(Junichi Kusama, Muso Shinden Ryu, demonstrando Seitei iaido -ZNKR, Japão)


A capacidade de visualização do que está acontecendo em um kata, vem com o tempo de treino, o que inicialmente pode ser difícil e um pouco superficial, com o passar dos anos ganha consistência e veracidade. Com a evolução do domínio técnico do manuseio da espada, a forma atinge grau elevado e refinado, o que possibilita executar técnicas complexas e difíceis de maneira a parecem simples e fáceis.


O universo do iaidoka é riquíssimo e repleto de desafios e conquistas, onde a evolução é fundamentada na dedicação e persistência. Se trata de um caminho sem fim e de constante aprendizado na busca pela compreensão da espada japonesa.


Continuemos estudando os katas a fim de nos desenvolvermos tecnicamente e mentalmente.


Jā matane (じゃあまたね)!

segunda-feira, 8 de março de 2021

Mulheres samurai


(foto: historydaily.org)

Comumente, não era permitido às mulheres serem samurai, no entanto há exceções. Nas famílias de samurai, elas eram educadas nas artes guerreiras e recebiam elevado treinamento igual aos membros homens, combateram igualmente em certos períodos da história japonesa e há evidências históricas que indicam até 30% de mulheres nos campos de batalha.


(Imagem: Toyohara Chikanobu / domínio público)

Uma das armas que possuíam instrução era a Naginata, arma longa com uma lâmina curva à ponta, tendo atualmente em sua versão moderna, o Naginatado, mais de 90% de praticantes do sexo feminino, devido à essa influência histórica. Também carregavam sempre junto a si a kaito, uma lâmina curta que ficava escondida nas vestimentas, usada para defesa, ou para tirar a própria vida em situações extremas.


(foto: historydaily.org)

No período Edo (1603-1868) existiram as Beshikime, cujo trabalho consistia em cuidar da proteção e segurança de importantes mulheres dos senhores feudais e para tal eram oficialmente autorizadas a portarem a katana. Esse cargo era exclusivo de mulheres e muitas queriam ser Beshikime, pelo status e alto salário, mas apenas quem tinha a devida educação conseguia, sendo a maioria nessa função proveniente de famílias samurais, com conhecimento em técnicas de combate.


(Imagem: Toyohara Chikanobu / domínio público)

Uma samurai famosa é Tomoe Gozen, que viveu no início da era Kamakura (1185-1333), concubina de Yoshinaka Minamoto, famoso samurai e primo do primeiro Shogun Yoritomo Minamoto, juntos chegaram a derrotar um exército de 100.000 em apenas uma noite. Ela foi uma temível e corajosa general em batalha e junto com Yoshinaka levaram os Minamoto à vitória contra o Clã Taira na guerra Genpei.

 

Diz-se que comandava até 1.000 homens e se recusava a recuar mesmo quando seus oponentes homens lhe ofereceriam a oportunidade por causa de sua condição de mulher. O fim de sua vida está envolto em mistério e não se sabe ao certo como foi. Há 15 monumentos espalhados pelo Japão em homenagem à Tomoe Gozen.

 

(fotos: historydaily.org / divulgação do filme 'Koto Nakazawa: The Beautiful Swordswoman')


Outra nome famoso é o de Koto Nakazawa, que viveu durante o fim do período Edo, ela era filha de um mestre de kenjutsu e recebeu treinamento desde criança, tornando-se muito habilidosa. Diz-se que aos 14 anos de idade derrotou seu pai fazendo uso da Naginata. Ela tinha 1,70m de altura , muito superior à média masculina japonesa de 1,60m.

 

Nos períodos turbulentos da ocidentalização do Japão o shogunato recrutava pessoas comuns para defenderem sua causa. Ela vestida de homem, junto ao seu irmão, viajou para Kyoto, onde se juntaram a grupos especiais que tinham esse propósito. Há inúmeros relatos sobre suas habilidades no manejo da espada. Após a derrota do shogunato pelas forças imperiais na Guerra Boshin, foi permitido a eles o retorno à sua terra natal, onde ela buscou casar-se e constituir família, porém, com a condição de que o seu pretendente fosse mais forte do que ela. Nunca se casou e faleceu com 88 anos em 1927.

 

(fotos: Canadian Kendo Federation / Suio Ryu Iai Kenpo - Budo Asturias)


Atualmente muitas mulheres de todas as idades em todo o mundo, praticam artes tradicionais japonesas, como o iaido. E para salientar a maestria das mulheres no manuseio da katana em nossos tempos, citamos algumas das atuais 5 iaidokas japonesas que atingiram o 8º. Dan, graduação máxima na arte e muito difícil de ser alcançada.


Atsumi Hatakenaka 

(foto: Pinterest de Antonio Cifariello)


Michiyo Hirose


(foto: shimotsuke.co.jp)


Miyuki Kinomoto

(foto: Pinterest de Javi Rg)


Que cada vez tenhamos mais mulheres aderindo à prática das artes marciais japonesas, em especial ao iaido.


Feliz Dia Internacional da Mulher!


Jā matane (じゃあまたね)!


(fontes: historydaily.org / let's ask Shogo / wikipedia.org)